sexta-feira, 22 de julho de 2011

LER QUANDO NÃO SE SABE

Todos os anos chegam à escola pública umas poucas crianças que já sabem ler, mas a maioria ainda vai aprender. E muitas pessoas se perguntam: Como será que algumas crianças se tornam leitoras antes de estudar as lições da cartilha? Será que são mais inteligentes?

Por outro lado, muitos também refletem: Por que algumas crianças levam dois, três, quatro anos, ou até uma vida (no caso dos adultos analfabetos) para aprender a ler? Com certeza, na maioria dos casos não se trata de um distúrbio, pois um dia eles aprendem – sabemos disso. Conversando com os pais, e até mesmo com essas crianças leitoras, descobrimos coisas interessantes. Eles dizem, por exemplo:
• Aqui em casa lemos a Bíblia todos os dias; meu filho sempre pergunta onde está escrito    o que escuta a gente ler.
• Gosto de ler histórias para ele e apontar onde estou lendo.
• Acho bom as crianças saberem o que está escrito nas embalagens e, por isso, leio sempre para minha filha, que me enche de perguntas.
• Ganho gibis velhos da minha patroa e dou para a minha filha brincar de ler.

É fascinante ouvir os pais contarem essas histórias e tantas outras, observar o interesse das crianças pela palavra escrita e, mais bonito ainda, ver como esses pais, sem perceber, estão o tempo todo ensinando aos filhos a respeito da leitura.
Nessas situações, os adultos são verdadeiros parceiros, são informantes; usam textos reais, tratam os pequenos como leitores, acreditam que é lendo que se aprende a ler – ainda que nem sempre tenham consciência disso. Para eles, compreender e decifrar o texto são coisas que caminham juntas.
Poderíamos dizer que essa é uma situação privilegiada: pais que dão a seus filhos informações a respeito da escrita. E o que acontece quando os pais são analfabetos? As crianças não aprendem só com adultos, mas também com outras crianças que já sabem ler. Quantas vezes não ouvimos os pais dizerem: O mais velho estava estudando e ele ficava observando; aprendeu praticamente sozinho. E há também o caso das classes multisseriadas, em que alunos com nível de conhecimento bem diferenciado aprendem muito uns com os outros.
Hoje sabemos que, para adquirir conhecimentos, não basta ouvir. Na verdade, as crianças interpretam o que ouvem, pensam e refletem a partir do que já conhecem. Desde muito pequenas, elas podem e devem conhecer os diferentes materiais de leitura, saber para que servem e tentar descobrir o que está escrito.
É por isso que o trabalho com a linguagem escrita é de extrema importância na Educação Infantil. Não se trata de preparar as crianças para o 1ºano, mas sim de oferecer-lhes a leitura e a escrita. As crianças pequenas sempre podem e querem aprender muito. Mas, o que fazer quando não há adultos informantes, nem irmãos que possam ajudar, nem classes multisseriadas? Nesses casos, o papel de ensinar a ler e escrever cabe somente à escola, mais especificamente ao professor.
Ao iniciar o ano, é fundamental fazer uma sondagem, um diagnóstico dos conhecimentos dos alunos. É indispensável entender como eles elaboram hipóteses a respeito da escrita e da leitura, para organizar um trabalho que lhes coloque bons desafios.


Dez questões a considerar

O planejamento de situações de leitura para alunos que estão se alfabetizando deve considerar as seguintes questões:

1. É possível ler, quando ainda não se sabe ler convencionalmente.

2. Ler (diferentes textos, em distintas circunstâncias de comunicação) é um bom problema a ser resolvido.

3. Quando o aluno ainda não sabe decodificar completamente o texto impresso e precisa descobrir o que está escrito, sua tendência é buscar adivinhar o que não consegue decifrar, recorrendo ao contexto no qual os escritos estão inseridos, bem como às letras iniciais, finais ou intermediárias das palavras.

4. Os alunos devem ser tratados como leitores plenos: é preciso evitar colocá-los em posição de decifradores, ou de “sonorizadores” de textos.

5. É fundamental planejar, desde o início do processo de aprendizagem da leitura, atividades que tenham a maior similaridade possível com as práticas sociais de leitura.

6. Deve-se dar oportunidade às crianças de interagir com uma grande variedade de textos impressos, de escritos sociais.

7. Apresentar os textos no contexto em que eles efetivamente aparecem favorece a coordenação necessária, em todo ato de leitura, entre a escrita e o contexto.

8. É preciso propor atividades ao mesmo tempo possíveis e difíceis, que permitam refletir sobre a escrita convencional: atividades em que os alunos ponham em jogo o que sabem, para aprender o que ainda não sabem.

9. É importante não trabalhar com as palavras isoladamente, mas como meio para que o aluno, com sua atenção focalizada em uma unidade pequena do texto, possa refletir sobre as características da escrita.

10. Deve-se favorecer a cooperação entre os alunos, de tal modo que eles possam socializar as informações que já têm, confrontar e pôr à prova suas diferentes estratégias de leitura.

Na sala de aula,
devemos oferecer aos alunos  muitas oportunidades de aprender a ler,
adotando procedimentos utilizados pelos bons leitores.

É necessário selecionar com cuidado os textos; garantir às crianças a oportunidade de observar como os já leitores utilizam os materiais de leitura; e organizar situações em que elas participem de atos de leitura. É preciso também planejar atividades de leitura que contribuam para a compreensão do sistema de escrita e favoreçam a análise e a reflexão acerca da correspondência fonográfica própria de nosso sistema de escrita. Esse tipo de atividade exige uma análise quantitativa e qualitativa da correspondência entre os segmentos falados e os escritos. São situações em que o aluno deve ler, embora ainda não saiba ler. Vejamos alguns exemplos (apud Actualización curricular (EGB) Primer Ciclo, Secretaría de Educación, Dirección de Curriculum, Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1995):

1. Garantir um espaço para trabalhar com textos conhecidos pelos alunos, aproveitando situações em que seja significativo ler e reler o que já conhecem de memória. Experimente, por exemplo, ensaiar uma música que todos vão cantar juntos, acompanhando com a leitura no texto impresso – ou um poema, ou uma adivinhação, que se vá gravar em fita cassete. Essas atividades tornam possível acompanhar no texto o que vai sendo dito, e ajudam a pensar na correspondência entre “o que se diz” e “o que está escrito”.

2. Quando se trata de textos desconhecidos, lançar mão de diferentes situações que requerem uma leitura exploratória, destinada a localizar determinadas informações (em vez de propor a leitura exaustiva de tudo que está escrito):

• localizar onde está dito – por exemplo, achar no jornal em qual emissora de tevê e em que horário é transmitido determinado programa de interesse;

• determinar se o texto diz ou não diz algo – por exemplo, ver se no cardápio do dia consta ou não consta determinada comida;

• identificar qual é a correta, entre várias possibilidades antecipáveis: qual das fichas da biblioteca corresponde ao conto de Branca de Neve, qual ao da Gata Borralheira…

3. Criar contextos que permitam aprofundar o trabalho sobre o texto, como, por exemplo:

• ler um trecho e pedir para os alunos formularem suposições sobre seu significado e, depois, confrontarem com os indicadores que o texto oferece;

• propor várias alternativas possíveis de interpretação, para que os alunos decidam qual delas aparece efetivamente no texto.

As crianças podem aprender muito sobre a escrita, tanto dentro quanto fora da escola, mas, para isso, a condição é acreditar que todas podem aprender e valorizar o que já sabem – em vez de enfatizar, o tempo todo, aquilo que ainda não aprenderam. O desafio pedagógico, como sempre, está na articulação entre o difícil e o possível de ser realizado pelos alunos.

Texto de Rosa Maria Antunes de Barros, a ser publicado em Cadernos da TV Escola, MEC/1999

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